quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Os segredos e o tempo


Conto a ser publicado na antologia "Se todos fossem iguais á você..." da Câmara Brasileira de Jovens escritores.

Embora aquela tivesse sido uma boa relação e sempre tivessem se dado muito bem, ele lhe escondera um grande segredo:
Era ela a causadora de sua insônia durante todo aquele longo (e ido) período de tempo.
Sim... Lembrava muito bem da época em que dividiam uma mesma cama. Ficava praticamente a noite inteira procurando encontrar uma boa posição que facilitasse a chegada do sono, sempre evitando olhá-la, pois era exatamente isso que o impedia de dormir: Uma vez que seus olhos cruzassem com a serenidade daquele lindo rosto, sua atenção estaria totalmente capturada, concentrada e imersa na beleza daquelas delicadas linhas faciais, na leve movimentação das narinas que acompanhavam a doce respiração, no jeito como as unhas compridas, bem cuidadas, e quase sempre descoloridas, frequentemente vinham a coçar o mesmo e exato ponto do queixo.
Era um dos muitos hábitos (manias?) dela o de dormir de lado, trazendo as mãos entreabertas próximas ao peito, virada para a direção dele! Era, assim, portanto, atraído, fisgado. Olhando-a, era-lhe simplesmente impossível dormir. Mas como não olhá-la? Até mesmo quando seus olhos se encontravam fechados, clamava por aquela visão. Constantemente na escuridão a procurá-la.
Certas madrugadas eles passavam abraçados no sofá diante da TV ligada. Ela dormia. Ele, colado às costas dela, com a cabeça recostada sobre aquele frágil pescoço, sentia o cheiro. Não do perfume que dificilmente ela usava. O cheiro do corpo dela. Era nesse momento ele a abraçava mais forte e beijava de leve a sua face.
Quando ela tinha sonhos ou pesadelos, ele acompanhava suas reações ante aqueles dois extremos: Breves sorrisos, expressões profundas de alegria, longos desesperos, mergulhos na mais pura agonia. E era nestas horas que ele sempre roçava de leve a sua mão buscando, de alguma forma, usufruir um pouco daqueles bons momentos oníricos ou, então, tentando tranquilizá-la no absoluto terror.
Poderia passar a noite inteira, parado, olhando-a. E foram muitas as vezes em que o fez.
E quando, no meio da madrugada, ela murmurava palavras incompreensíveis, ou então desconexas, ele imaginava que era seu nome que ela chamava. Que em seus sonhos era com ele que ela estava. Que todo o amor que por ele sentia ela declarava.
Às vezes não resistia e passava a mão por seus longos cabelos. Noutras alisava seu rosto, acompanhando, calmamente, cada linha. E quando terminava o ritual, o repetia mais uma vez. E outra. E outra... Perdia-se naquela face. E se fosse possível, se tivesse havido uma noite eterna, se perderia definitiva e infinitamente. Adorava acariciar seu rosto. E ela não acordava com o seu toque. Tinha o sono profundo. Não fingia. Não. Ele tinha certeza: A razão de sua insônia profundamente dormia. Inocente (e como e porque não?), ela não tinha noção do grave dano que ao sono de seu companheiro causava e o quanto, apenas por suprir a básica necessidade de dormir, o afligia.
Nas noites frias, ele a abraçava e por ela era abraçado. Via, nestas ocasiões, aquele rosto ainda mais de perto, por vezes quase colado ao seu, noutras em seu peito encostado. E maior era o seu martírio. Sentia o calor leve que daquele corpo emanava e então a tentação vinha mais forte do que nunca. Mas não ousava interromper aquele momento sagrado. Embora muito quisesse, não procurava o seu toque, as suas carícias, o seu suor, o seu sexo. Não enquanto dormisse. Não poderia e nem conseguiria voluntariamente acordá-la.
E nas raras vezes (e nos curtos períodos de tempo) em que conseguia dormir, ele tinha sonhos, todas as suas palavras, murmuradas, eram compreensíveis, tinham sentido: o nome dela ele chamava, era com ela que ele estava e todo o seu amor por ela ele declarava.
Aquele era o segredo: aquela moça era a causadora da sua insônia. E mesmo passado tanto tempo, ainda o era. A diferença é que antes ele não conseguia dormir por tê-la ao seu lado e agora não pregava os olhos por não mais tê-la.
Mas havia outro segredo.
Ainda mais secreto.
Ele a amara.
E ainda a ama.
E todas as noites ora para ter novamente, ao menos apenas mais uma vez, aquele martírio, em sua cama.
Uma pena ele ter escondido, sob uma camada fina e levemente ofensiva de indiferença, toda a intensidade dos seus sentimentos.
Triste é a sina de certos segredos: Quando não revelados no momento propício, passada a devida oportunidade, estão ultrapassados, fadados á insignificância, ao esquecimento, e, uma vez enterrados, se perdem no tempo.
 
 
 

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